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Nota da ABEPSS em defesa da luta antirracista

05/06/2020

“Vidas negras importam!”. É preciso qualificar como genocídio negro a morte sistemática de mulheres negras e homens negros, de todas as faixas etárias, muitas vezes pela violência de Estado, nas suas diversas expressões


A Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS consciente do seu papel na construção de um projeto de formação profissional antirracista em um momento crucial onde a frase "I can't breath" ("Eu não consigo respirar") trepida o mundo, vem a público reafirmar que “vidas negras importam!” e que é preciso qualificar como genocídio negro a morte sistemática de mulheres negras e homens negros, de todas as faixas etárias, muitas vezes pela violência de Estado, nas suas diversas expressões.

O racismo é elemento estrutural do capitalismo em níveis mundiais e na particularidade da vida brasileira, sua institucionalização reitera práticas eugenistas, higienistas e punitivistas dirigidas à população negra historicamente. Há entre escravidão e capitalismo mundial uma relação orgânica, onde a supressão de um, pressupõe indiscutivelmente a extinção do outro.  

O racismo estrutura a vida cotidiana desde o deslocamento forçado de povos africanos para o Brasil, com requintes de crueldade que em muito se assemelham às mortes de George Floyd (2020) e Eric Garden (2014) e à agonia presente no pedido de socorro de ambos: “eu não consigo respirar” no contexto norte-americano. Aqui, acolá e em todos os cantos do mundo, a dominação capitalista tem como elemento estrutural a hierarquização dos povos a partir da superioridade branca. O que varia são as estratégias que garantem esta acumulação de capital, que vão desde a escravização dos povos originários das Américas e de povos africanos, passando pelo financiamento das ditaduras e pela incitação da violência em territórios africanos, oficializadas com a Conferência de Berlim no final do século XIX, o massacre do povo namíbio na mesma época, o holocausto judeu, a segregação racial nos Estados Unidos da América ou o Apartheid na África do Sul.

Em nível local, testemunhamos a brutalidade das mortes de: Luana Barbosa (2016) espancada durante abordagem policial em Ribeirão Preto/SP, mulher negra, lésbica, que indagou: “Eu sou mulher; não estou fazendo nada! Quero ser revistada por uma policial!”; Cláudia Silva Ferreira (2014) baleada durante uma troca de tiros, “socorrida” e colocada no porta-malas de uma viatura policial e que teve seu corpo arrastado no Rio de Janeiro/RJ; Rafaela Cristina Souza dos Santos (2015), adolescente de 15 anos, que morreu em decorrência de complicações pós-parto, em uma combinação entre violência obstétrica e racismo institucional; Marielle Franco (2018), vereadora, assassinada no centro da cidade do Rio de Janeiro/RJ, entre tantas outras vidas ceifadas de maneira abrupta.

E como se não bastasse a violência contra si, a mulher negra também experimenta com maior intensidade a violência em suas famílias (filhas e filhos, irmãs e irmãos, companheiras e companheiros). Esta é mais uma das expressões do racismo estrutural, cujas ações estatais não são articuladas na perspectiva de proteger igualmente todas as pessoas da violência em suas diversas expressões nem de desenvolver ações de manutenção/preservação da vida em condições satisfatórias no âmbito dos direitos sociais.

A brutalidade atinge sobremaneira as/os jovens negras/os e as crianças e adolescentes negras/os, a exemplo de perdas como as de: João Pedro Mattos Pinto (2020) assassinado durante uma operação conjunta das polícias Federal e Civil do Rio de Janeiro/SP, de Ágatha Vitória Sales Félix (2019), morta quando voltava para casa com a mãe, Jenifer Silene Gomes (2019), de 11 anos, vítima de bala perdida. Kauê Ribeiro dos Santos (2019), de 12 anos, foi baleado durante operação policial, Kauã Rozário (2019), de 11 anos, foi atingido por uma bala perdida, Kauan Peixoto (2019), de 12 anos, foi baleado durante operação policial – entre eles há a semelhança dos nomes, a mesma faixa etária, a morte no mesmo ano, a brutalidade destas perdas e o fato de serem meninos negros moradores das comunidades, historicamente negligenciadas pelo Estado Brasileiro.

É o racismo que retira das crianças negras o direito de viver a infância apenas com as preocupações típicas desta fase da vida, atribuindo a elas inúmeras responsabilidades e preocupações acerca da provisão da vida material, via trabalho infantil; o amadurecimento precoce, que atinge de maneira mais perversa as meninas, obrigadas a cuidar da casa, das irmãs e dos irmãos mais novos, quando os responsáveis pela própria precarização do mundo do trabalho, entre outras questões, precisam sair para trabalhar e não dispõem de recursos para custear os cuidados prestados por terceiros.

A violência racial no Brasil e no mundo utiliza a narrativa da superioridade branca em relação aos “outros” e, nesta categoria, negras e negros sofrem as mais diversas violações de direitos humanos, dentre as quais o direito à vida, figura como central. Essa narrativa autoriza a desumanização dos corpos e mentes negras e dos povos originários, portanto, o genocídio nas suas diversas expressões como extermínio das suas culturas, a desvalorização e ou demonização de seus ritos religiosos, a expropriação e destruição ambiental de seus territórios e o assassinato, quer seja na área urbana, quer seja na área rural, bem como  das comunidades quilombolas e dos povos originários.

Na intersecção entre raça/etnia, gênero e classe social enquanto produtores da hierarquização entre as pessoas, o ônus do estigma da incapacidade intelectual, da moral rebaixada, da violência nata, das condutas desviantes e da hiper sexualização recai sobre os corpos negros. Os dados estatísticos indicam o modus operandi do extermínio brasileiro: a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil; cerca de 71% das pessoas assassinadas no Brasil são negras; pessoas negras são 2,5 vezes mais vítimas de armas de fogo do que pessoas brancas; mais de 75% dos mortos pelas polícias brasileiras são negros; entre 2016 e 2017, o número de quilombolas assassinados cresceu 350% e, no Rio de Janeiro, entre 2012 e 2015, 71% dos ataques religiosos registrados foram contra religiões afro-brasileiras.

No contexto da pandemia, o racismo estrutural se confirma na realidade estadunidense e brasileira. A pesquisa do Laboratório APM Research Lab, denominada Color of Coronavirus (A cor do Coronavírus), evidenciou que o número de mortes de negros chega a ser três vezes acima das mortes de brancos. Em alguns estados os números são muito mais alarmantes, como na Geórgia, Louisiana e Alabama. No estado de Kansas, as mortes de negros vítimas do covid-19 são sete vezes maiores que da população branca. No Brasil, o estudo realizado pela PUC-RJ, mostra que o processo de desigualdade social e racial se escancara nos dados das vítimas do covid-19. A pesquisa divulgada no final de maio, revelou que pretos e pardos sem escolaridade correspondem a 80,35% das mortes quando comparado a vítimas com escolaridade e brancos.

No momento em que elaboramos esta nota mais uma perda nos faz refletir sobre o valor da vida: Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, que morreu após cair do 9º andar de um prédio no Recife, pois a mãe, empregada doméstica, estava trabalhando, em meio a pandemia do Coronavírus, e deixou o garoto sob a responsabilidade da patroa enquanto cumpria a tarefa de passear com os cachorros. A cultura escravocrata permanece enraizada no Brasil e, neste caso, não era apenas um menino inquieto chamando pela mãe. Era um menino negro, cujo corpo é racializado e desumanizado ainda na primeira infância. A valoração do corpo negro é negativa e, portanto, prescinde de proteção, na ótica racista.

Portanto, o debate sobre raça não é uma falsa questão, uma vez que os grupos raciais constroem concepções acerca dos outros grupos raciais, no intuito de marcar a diferença. Do ponto de vista biológico somos todos pertencentes à raça humana, mas as manifestações cotidianas de discriminação e preconceito étnico-racial se constroem no processo de sociabilidade a partir da elaboração de um conjunto de atributos físicos, intelectuais, culturais e religiosos que outorgam à população negra um lugar de desqualificação. É preciso apreender raça a partir da construção social, conforme numerosas/os pesquisadoras/es já demonstraram.

A ABEPSS reitera, portanto, seu compromisso com o enfrentamento de todas as formas de opressão, entre elas o racismo. A entidade também recomenda às Instituições de Ensino Superior – IES que dispõe de cursos de Serviço Social que estimulem o debate crítico sobre relações étnico-raciais como parte dos fundamentos do trabalho profissional, que estejam atentas aos efeitos do racismo na trajetória de estudantes, docentes e pesquisadoras/es pertencentes às populações historicamente discriminadas e que fomentem, no limite de suas possibilidades, nos cursos de graduação e pós-graduação, os projetos e iniciativas de produção de conhecimento que permitam conhecer aspectos ainda pouco discutidos desta expressão da “questão social”.

Brasília (DF), 05 de junho de 2020.

Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social 
Gestão “Resistir e avançar, na ousadia de lutar!”

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