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ECA 31 anos: avanços, desafios e ameaças aos direitos de crianças e adolescentes

29/07/2021

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) representou um salto civilizatório para o Brasil ao ser fundado no paradigma da proteção integral, compreendendo crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Entretanto, Brasil vive período de retrocesso e é preciso defender a legislação

No mês em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 31 anos, a Abepss preparou esta matéria ampla, ouvindo assistentes sociais experientes na atuação e pesquisa na área e que falaram sobre os principais avanços, desafios e as mudanças de paradigmas que a legislação possibilitou, assim como a importância da legislação como instrumento na formação em Serviço Social e na atuação profissional.

O ECA é um divisor de águas no Brasil porque rompe com os paradigmas de compreender a criança e o adolescente como objeto, sem participação nas decisões e processos. No campo da criminalização, ele avança da visão menorista (os “menores”) para a compreensão destas pessoas como sujeitos integrais que precisam de cuidados integrais.

É o que explica Giovane Antonio Scherer, professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-graduação em Política Social e Serviço Social da mesma universidade.

“A criança e o adolescente precisam ser protegidos em todas as esferas da vida. Precisam ter participação nas políticas e são sujeitos prioritários. E o ECA os prioriza. É uma legislação construída a partir das lutas dos movimentos sociais de muito tempo. Os avanços são reconhecidos internacionalmente e a Lei serve de referência para outras legislações no mundo. Mas, mudanças na realidade brasileira não se fazem por leis. Elas precisam ser materializadas no âmbito das políticas públicas. Apesar de mais de 30 anos, ainda estão presentes na sociedade os traços de compreensão menorista que criminaliza os adolescentes pobres e explicita o racismo estrutural. O Brasil é um país em pleno retrocesso civilizatório e que ataca os avanços construídos pela luta dos movimentos sociais”, disse o professor que também é membro da Coordenação Geral do GTP “Serviço Social, Geração e Classe Social”, da Abepss.

Criminalização

Ao contrário de como o senso comum costuma enxergar o ECA, o Estatuto não é instrumento de impunidade para adolescentes. Ele também tem caráter punitivo. A população muitas vezes é influenciada por programas policiais de TV aberta, especialmente locais, que são sanguinolentos e não têm responsabilidade na contextualização de notícias, apelando apenas para o sensacionalismo que ajuda a consolidar o retrocesso civilizatório brasileiro.

“O ECA protege e responsabiliza, mas numa perspectiva socioeducativa. Mas o seu princípio fundante é a questão da proteção integral da criança e do adolescente. O desafio é transversalizar o debate de raça, etnia e gênero. Está em curso um genocídio da juventude negra. Jovens cada vez mais jovens estão sendo assassinados. A mortalidade é a expressão mais grave da falta de direitos. A ausência de estado é o que precisa ser publicizado. O Mapa da Violência e outros documentos reiteram o grande genocídio dos negros, o racismo estrutural, e demonstram a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas de proteção. E é preciso pensar também nos jovens após a adolescência, de maneira contínua”, explicou Giovane Antonio Scherer.

Para ele, é preciso romper com a lógica adultocêntrica que não percebe o que as crianças demandam. “Temos que ouvir e enxergar as crianças. É um desafio profissional para quem trabalha com isso. Pensar políticas públicas ‘de, para e com’ os sujeitos beneficiados pelas políticas. O movimento secundarista, por exemplo, já demonstrou isso quando promoveu ocupações em escolas. O ECA vem com ideia de que criança e adolescentes são sujeitos de direitos e não objetos de tutela, como era a lógica dos códigos antigos. Mas o desafio é muito sério. Bolsonaro disse que o Estatuto tem que ser rasgado e jogado na latrina. Lutamos para avançar e para não deixar destruir o que já temos”.

O professor acrescenta que o ECA cria parâmetros de importância para o melhor interesse no caso de adoção, por exemplo. “Excepcionalmente, quando toda a rede não dá conta, a criança, ou o adolescente, pode ser colocada em família substituta. Mas a prioridade é que haja condições de cuidado no âmbito da própria família. Mas há uma lógica de culpabilização das famílias pobres. O estado se retira, não cumpre seu papel, e culpa a família. E aí, temos fantasmas como a proposta de Estatuto da Adoção, um retrocesso que inverte a prioridade beneficiando apenas a família que adota e não a criança, assim como a redução da maioridade penal que jogaria esses adolescentes no sistema penitenciário brasileiro falido e denunciado pelos órgãos internacionais sendo que que temos um sistema socioeducativo muito melhor do que o penitenciário”, explicou.

Novas práticas

Rodrigo Silva Lima é professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Direitos Humanos Infância, Juventude e Serviço Social (NUDISS), também da UFF. Para ele, houve avanço no sentido de se incorporar uma literatura crítica no trabalho com crianças e adolescentes, havendo orientação por meio da teoria que contribui para uma atuação teórico-metodológica-crítica. Entretanto, há ainda uma visão eugênica e racista no tratamento a determinados segmentos vistos como “menores” que não têm direitos.

“Nossa área (Serviço Social) incorpora a mudança de paradigma com visão mais ampla e humana, combatendo a reprodução de preconceitos e discriminações. Mas algumas profissões – na Saúde e Educação, por exemplo, – não conhecem o estatuto e muitas vezes adotam com crianças e adolescentes práticas que já foram superadas e que antecedem o período do ECA, reproduzindo comportamentos humilhantes e impedindo que direitos sejam garantidos. Confundem o papel da criança e do adolescentes nos espaços e as responsabilidades da família”, disse Rodrigo Silva Lima.

O professor, que também é membro da Coordenação Ampliada do GTP “Serviço Social, Geração e Classes Sociais” da Abepss, explica que assistentes sociais, quando se deparam com essas contradições, exercem papel educativo para incorporar a filosofia do ECA. O tensionamento é constante porque, para além de ser uma Lei, o Estatuto é uma proposta de nova sociedade em que são construídas outras práticas com crianças e adolescentes. Ele tem dimensão protetiva, mas também punitiva. “É preciso pensar a prevenção como aspecto fundamental na proteção social. Muitas áreas só dão ênfase ao punitivo”.

Desafio

Avançar com o ECA como elemento obrigatório no currículo é importante, segundo Rodrigo Silva Lima, em razão de “muitas/os assistentes sociais trabalharem direta e indiretamente com adolescentes e com famílias. É importante conhecer e entender a filosofia subjacente ao ECA e a filosofia da proteção integral. Isso é um desafio nos diversos espaços, como por exemplo, no atendimento de Saúde, quando a criança e o adolescente têm direito a acompanhante e muitas vezes homens são impedidos de acompanhar ou as famílias são julgadas por não poderem estar lá. Na esfera criminal, muitas vezes há pressão para que assistentes sociais produzam provas contras as famílias. Querem que a/o profissional faça escuta especial, sendo que o nosso trabalho não é esse, mas sim proteger a criança. Não estamos ali para criminalizar o violador. Nossa abordagem não é policialesca. Nesse mesmo terreno, nos deparamos com a prática de prática de recolhimento compulsório. Mas não temos que impedir o direito de ir e vir. Crianças e adolescentes precisam se sentir protegidos e têm o direito de estar nos espaços da cidade”.

O professor Rodrigo Silva Lima aponta que na Educação o desafio também está presente, uma vez que a criação de espaços democráticos deveria ser prioridade, mas eles estão marcados por autoritarismo. “Os períodos longos de regimes antidemocráticos do Brasil deixaram como uma de suas diversas heranças uma cultura adultocêntrica que trata a criança como alguém sem direito a voz e participação na pactuação das regras de convivência e no estabelecimento de normas e funcionamento. Crianças e adolescentes precisam participar dos processos educativos e a responsabilização deve ser coletiva, com uma perspectiva democrática”, defendeu.

Formação

Para que mais mudanças ocorram, é preciso que a formação em Serviço Social possibilite que as/os futuras/os profissionais conheçam a realidade da construção do ECA, que teve a participação de diversas/os assistentes sociais. É o que explica Eunice Teresinha Fávero, assistente social e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças e Adolescentes – com ênfase no Sistema de Garantia de Direitos, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Enquanto assistentes sociais, é importante conhecermos a realidade da construção do ECA, no final da década de 1970 e durante a década de 1980.  E estabelecermos articulações com a construção, naquele momento, de um novo projeto para o Serviço Social no interior da conjuntura social, política e econômica do período, que foi de grande efervescência das lutas sociais em torno de um novo projeto societário – ainda que com diferenças importantes quanto ao seu horizonte. Podemos dizer que, se o Serviço Social estava construindo um projeto profissional que tem a emancipação humana no horizonte, não se pode afirmar o mesmo dos dispositivos que constituíram o ECA. Mas, podemos afirmar que a direção civilizatória e a perspectiva da defesa dos direitos humanos unem esses dois projetos. Nesse sentido, as pautas do Serviço Social, alinhadas à defesa intransigente dos direitos humanos e à não discriminação de qualquer ordem no exercício profissional, estão também presentes de alguma maneira no ECA”, disse Eunice Teresinha Fávero.

Ela salienta que é fundamental que as novas gerações de assistentes sociais, formadas mais recentemente ou em formação, se apropriem dessa história e do que significou a doutrina da “situação irregular”, o “menorismo”, e a perspectiva adultocêntrica que pautavam os antigos códigos de menores no trato das/os filhos da população trabalhadora. Houve um salto civilizatório com o ECA que, ao ser fundado no paradigma da proteção integral, trouxe a compreensão de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, ainda que no limite da ordem burguesa. Inserir o estudo do ECA na formação profissional de assistentes sociais não significa simplesmente “saber da letra da lei”, mas fundamentalmente conhecer o processo histórico de sua construção. Assim como é preciso saber sobre as tentativas de setores da sociedade alinhados ao retrocesso conservador, patrocinados pelo atual Governo Federal, que almejam alterar a legislação para fazer regredir os avanços.

“Isso Implica na necessidade de se apropriar de conhecimentos sobre o que de fato fundamenta o ‘ser sujeito de direitos’, estar em ‘condição peculiar de desenvolvimento’ e ‘ter prioridade absoluta’ – bases da doutrina da proteção integral. Porque no dia a dia do trabalho, assistentes sociais estarão em contato direto com a realidade de crianças, adolescentes, jovens, famílias, na grande parte dos espaços de trabalho em que atuarão. A produção do conhecimento pelo Serviço Social necessita atentar-se a essas questões. Não em uma perspectiva focada no segmento em si, fragmentado da realidade mais ampla, mas enquanto investimento que busque conhecer quem é a criança, adolescente e jovem com as/os quais assistentes sociais trabalham, quais suas particularidades em termos de classe, raça/etnia, gênero/sexo e orientação sexual, em que realidade social se inserem e como essa realidade se coloca em relação ao Sistema de Garantia de Direitos, e em relação aos direitos sociais fundamentais, dispostos constitucionalmente e no ECA”, ressaltou.

Conhecimento

Grande parte dos espaços sócio-ocupacionais nos quais assistentes sociais atuam atendem crianças e adolescentes direta ou indiretamente. A/O assistente social tem que conhecer o ECA e se os princípios, as diretrizes e as políticas nele dispostas estão sendo implementadas no território em que vivem os sujeitos que atende no dia a dia.

“Esse conhecimento é fundamental para a/o assistente social conhecer e estabelecer articulações com a rede socioassistencial e/ou chamar a atenção para a falta ou as falhas dessa rede, elaborar e fundamentar registros documentais relativos aos atendimentos, sustentar posicionamentos de defesa de direitos dos sujeitos – crianças, adolescentes e famílias”, disse Eunice Teresinha Fávero. Ela ressaltou, ainda, que, sem isso, a/o profissional possivelmente não efetivará trabalho competente do ponto de vista técnico e ético e, consequentemente, não contribuirá para assegurar direitos aos sujeitos crianças e adolescentes na ponta do exercício profissional, onde as expressões da questão social se materializam.

Por fim, Eunice explica que a aprovação do ECA afetou a atuação de muitos assistentes sociais.  Entretanto, ela lembra que a alteração no plano legal em relação ao trato das crianças e adolescentes não necessariamente implicou na sua assimilação e incorporação em todos os espaços de trabalho da categoria profissional. “O ECA trouxe e pode continuar trazendo impactos importantes na direção da necessária transformação sociocultural de práticas profissionais e institucionais arraigadas historicamente. Ou seja, práticas que deveriam romper com o conceito do objeto ‘menor’ e colocar no seu lugar o conceito de sujeito ‘cidadão de direitos’. Apropriar-se dos fundamentos que embasam esses conceitos é uma das condições necessárias para a/o assistente social sustentar seu trabalho no enfrentamento cotidiano das expressões da questão social e contribuir com a defesa e a garantia de direitos de crianças e adolescentes”, concluiu.

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