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Diante de uma abolição inacabada, as lutas históricas de negras e negros seguem vivas no Brasil

19/11/2022

O sequestro do povo negro de África e o trabalho forçado imposto foram fundamentais à lógica de produção e reprodução social do capital desde a sua gênese e para a sustentação de privilégios centrados na supremacia branca

A abolição segue inacabada no Brasil. O povo negro continua enfrentando processos de exploração, opressão e dominação que incidem cotidianamente sobre suas vidas. Por isso, as lutas históricas, iniciadas há séculos por pessoas como Zumbi dos Palmares, ainda são extremamente necessárias. Hoje, o racismo estrutural precisa ser combatido no cotidiano das relações e das instituições.

De acordo com a professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Loiva Mara de Oliveira Machado, não é possível justificar silenciamentos, violências, epistemicídios, e genocídios de toda a ordem contra o povo negro, sob o mito da democracia racial e da lógica da meritocracia.

“O mito da democracia racial deve ser combatido para que se expresse de forma nítida o real significado do racismo antinegro na realidade brasileira. O povo negro não conforma somente dados estatísticos da violência que incide sobre seus corpos. É bom lembrar que o seu sequestro de África e submissão ao trabalho forçado foram fundamentais à lógica de produção e reprodução social do capital desde a sua gênese e para a sustentação de privilégios centrados na supremacia branca”, explicou.

Ela salienta que é preciso propagar que houve uma falsa abolição, uma vez que a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888, proporcionou liberdade sem direitos, sem qualquer tipo de reparação histórica. “Foi um dia que não acabou. A abolição inacabada pode ser verificada nos tempos atuais quando, no Brasil: pessoas brancas ganham 74% a mais do que pessoas negras (pretos e pardos); a realidade dos territórios onde não há sequer um serviço de saneamento básico atinge 28% de pessoas brancas e 44% de pessoas negras; e o analfabetismo atinge 4% de pessoas brancas e 10% para pessoas negras (IBGE, 2018)”.

A professora acrescenta que o flagelo da fome também atinge majoritariamente a população negra. “Mais da metade (58,7%) da população convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave (Rede PENSSAN, 2022). Em 2022,  33,1 milhões de pessoas não têm o que comer, ou seja, passam fome. E a fome tem raça, pois, entre os lares com referência de pessoas negras (pretas e pardas), 65% convive com restrição de alimentos em qualquer nível e 18,1%  passam fome. E ainda temos o lamentável índice de 75% das vítimas de homicídios que são pessoas negras. No Brasil, a bala não é perdida, mas, direcionada à corpos negros e indígenas, levando ao genocídio e ao crescente feminicídio”.

Consciência Negra

Loiva Mara de Oliveira Machado, que também é Integrante do GTP Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Feminismos, Raça/Etnia e Sexualidades da Abepss, ressalta que ainda há muito que fazer para que as reparações históricas sejam asseguradas como direitos para que um dia as gerações futuras de pessoas negras possam efetivamente celebrar a abolição tão perseguida pela ancestralidade.

“Por isso, para nós dos movimentos negros, o dia 20 de novembro é um marco de luta, resistência e insurgências coletivas. Buscamos forças, na energia da Lagoa Encantada, no território coletivo do Quilombo dos Palmares, para reafirmar que vidas negras importam – vivas, livres e protagonistas de sua própria história!”, defendeu Loiva.

Serviço Social

Para a professora da UFRGS, o bolsonarismo incide de forma violenta, autoritária e sem tréguas em vários âmbitos da sociedade intensificando os sistemas de exploração, opressão e dominação. Entretanto, ela chama a atenção para o fato de esta lógica não estar restrita à política bolsonarista, uma vez que também é reproduzida, com outras estratégias, em espaços denominados democráticos.

“Não há condições de materializar um projeto de sociedade voltado à emancipação humana enquanto houver racismo, capitalismo, machismo e outras formas de exploração-opressão-dominação. Portanto, primeiramente temos que reconhecer que o racismo está presente na sociedade e na profissão, nos projetos de formação na graduação, pós-graduação e nos diferentes espaços de exercício profissional das/os assistentes sociais. Observemos a ausência ou a precária presença de conteúdos sobre a questão racial em nossos currículos; em nossas bibliotecas eurocentradas; em nossos processos seletivos que não contemplam políticas de cotas para estudantes e profissionais; e em nosso cotidiano de trabalho que oculta, nos registros profissionais, o perfil das/os usuárias/os cidadãs e cidadãos de direitos quanto ao quesito raça/cor/etnia”, exemplificou.

Loiva Mara de Oliveira Machado registra, contudo, que houve avanço significativo por meio de posicionamentos coletivos das entidades da categoria, como a ABEPSS, o conjunto CFESS/CRESS, e a ENESSO. “Mas, há um longo caminho a percorrer para que estes posicionamentos, vinculados ao projeto ético-político profissional saiam do papel, ganhem concretude em nosso cotidiano e contribuam efetivamente para a construção de uma práxis antirracista”, concluiu.

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