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A compreensão da diversidade dos povos indígenas e o avanço no respeito aos seus direitos

18/04/2022

A história dos povos originários precisa ser reescrita pela palavra e pela mão dos próprios povos indígenas, para que ela tenha o significado verdadeiro do que aconteceu e do que acontece

A ressignificação do 19 de abril, antigo Dia do “Índio”, tornou-se uma ferramenta poderosa na luta dos povos indígenas no Brasil. Uma das estratégias históricas do estado brasileiro para enfraquecer os movimentos e suas reivindicações foi a desqualificação dos indígenas. Para isso investiram, utilizando inclusive as escolas, na imagem de um indígena único, sem autonomia, que precisaria estar sob tutela de pessoas não indígenas. Resistem no Brasil hoje mais de 896 mil indígenas, 305 povos e 274 línguas diferentes (Censo 2010). Quando os portugueses invadiram os territórios, em 1500, estimativas de historiadores apontam que havia 5 milhões de pessoas e 1.400 povos habitando todo o território brasileiro. A partir daí, começou o genocídio promovido pelos invasores.

A assistente social Gilza Kaingang, que faz parte do Povo Kaingang, que habita a terra indígena São Jerônimo, no município de São Jerônimo da Serra, no norte do Paraná, explica que os povos originários estão reafirmando o que querem e o que são, e enfatiza a necessidade de desmistificar, principalmente no espaço escolar, histórias reproduzidas que não correspondem à realidade de diversas etnias.

“É preciso entender quem são esses indígenas no Brasil, quantos povos são. O Censo de 2022 deve contabilizar ainda mais etnias no país. Foram criados vários estereótipos ao longo da história do Brasil que reforçam vários preconceitos que os indígenas sofrem até os dias atuais. É preciso desmistificar essa ideia do indígena genérico”, explicou Gilza Kaingang, que também é mestre pelo Programa de Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutoranda no mesmo programa.

Elizângela Cardoso de Araújo Silva, a Eliz Pankararu, assistente social que é indígena pankararu, doutora em Serviço Social e coordenadora de Estudos e Projetos do Coletivo Indígena Aroeira, concorda com a necessidade de reescrever a história dos povos indígenas no Brasil.

“A história dos povos originários no nosso país precisa ser reescrita pela palavra e pela mão dos povos indígenas, pela nossa memória, pela leitura e análise crítica do movimento indígena e pró-indígena, com o significado verdadeiro do que aconteceu, do que acontece. O termo “índio” não foi escolha nossa, negativamente estereotipado, não dá conta da diversidade que é essa população no Brasil. Passou a ser adotado por necessidade em alguns contextos, mas assume outros significados, em favor da luta pelo encontro com elementos de unidade entre os povos no Brasil. Somos povos indígenas, originários, porque somos múltiplos e com as expressões objetivas e subjetivas da ancestralidade dos primeiros habitantes da terra, somos coletividades de identidade étnica, povo, nação com elos fortes de parentesco, organização social, cultura, tradição, crenças e costumes ancestrais, vinculados aos nossos antepassados”, disse.

Pluralidade

Ela acrescenta que a visão romantizada, a definição de “um dia” para lembrar do “índio” como um ser mitológico do passado tem um impacto ruim, nocivo para a população brasileira que é o não conhecimento, o não entendimento, acarretando o não respeito à existência de uma pluralidade de etnias indígenas no Brasil, de povos, de línguas, crenças, costumes de múltiplas cosmologias, de ser e viver como identidades coletivas presentes em contexto urbano e rural de todas as regiões do país.

O professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Wagner Roberto do Amaral, membro da Comissão Universidade para os Índios (Cuia), da mesma Universidade, lembra que, desde 1500, a população originária foi abordada com violência por meio dos assassinatos, estupros, conversões forçadas ao cristianismo pelos missionários e pela expropriação territorial.

Ele acrescenta que outra forma de violência foi a desqualificação e inviabilização da população indígena. “Construir a ideia idiotizada, preconceituosa e estigmatizada dos indígenas é parte do mecanismo de descaracterizar. Isso ainda permanece. Os processos de escolarização ainda são muito colonizadores das mentes”, disse.

Terra Livre

Mais de oito mil indígenas, de mais de 200 etnias diferentes, estão em Brasília organizados em torno do 18º Acampamento Terra Livre (ATL) 2022, que tem como tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política” no acampamento Terra Livre. As pessoas estão ocupando o parlamento, a frente do Palácio do Planalto e do STF. Abril é um mês de luta da população indígena e, entre as pautas do ato em Brasília, como a luta contra o PL 490/2007 (modifica as atuais normas legais para demarcação de terras indígenas) e o PL 191/2020 (prevê instalação de projetos de mineração e de infraestrutura em terras indígenas).

Num encontro com o ministro do Supremo Tribunal Eleitoral (STF) Edson Fachin, mulheres falaram do marco temporal. Segundo essa tese, indígenas só podem reivindicar áreas que ocupavam oficialmente até 5 de outubro de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada. Fachin é relator do caso que começou a ser julgado em agosto de 2021 e está parado por conta de um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Fachin já votou contra o marco temporal e a previsão é que o julgamento seja retomado em junho de 2022.

Na Constituição de 88, houve o reconhecimento de especificidades étnicas e das línguas, e a superação de uma perspectiva de tutela, substituída pela autonomia e protagonismo. As organizações passam a falar por si sem precisar que não indígenas falem por eles, configurando um avanço nos campos legislativo e jurídico.

Governo opressor

O professor Wagner Roberto do Amaral lembra que o marco temporal é um absurdo e que o STF deve construir uma leitura e uma coerência jurídica de acordo com os povos indígenas, uma vez que em 1500 existia uma população nesse território com vestígios e sítios arqueológicos em todo o país. Além disso, ele ressalta que os povos indígenas estão cada vez mais organizados.

“Há coletivo de advogados indígenas que se apresentam no STF para fazer a defesa de suas teses. Os povos são uma presença guardiã do patrimônio ambiental que esse Governo Federal quer usurpar. Conforme avança a quantidade de indígenas no ensino superior, aumenta a aproximação com ferramentas técnicas e jurídicas para o enfrentamento. Passam a ser ouvidos e falam em nome do seu povo. Isso cria uma diferença muito grande na apreciação do Supremo, por exemplo”, explicou.

A assistente social Gilza Kaingang também abordou as movimentações do acampamento Terra Livre. Para ela, o movimento fortalece os povos indígenas e a luta pelos territórios. “Muitos povos não têm suas terras demarcadas. É preciso entender as especificidades de cada povo. Entender isso abre espaço para que as terras indígenas sejam demarcadas. Entendemos que com as terras demarcadas muitas outras políticas entram nesse espaço. Sem isso não temos o estado presente. Embora o estado seja muitas vezes uma força que não atende as necessidades dos indígenas, esse é um caminho para que políticas públicas aconteçam, como Saúde e Educação, que precisa ser bilíngue e com especificidades culturais. É uma luta que nos une enquanto povos indígenas perante esse governo que promove constantes ataques. Um governo que não respeita a diversidade étnico-racial do Brasil. A mobilização é contra a mineração e a exploração ilegal das terras, e pela proteção das culturas”.

O movimento é feito de muita força ancestral, política, e social. É o que ressalta Eliz Pankararu. “O atual governo investe em um projeto que é de destruição física e cultural dos povos indígenas, quando não respeita referências normativas das conquistas legais históricas e aposta em mecanismo na função reguladora de regressão dessas conquistas, abrindo portas para ‘a boiada passar’ e prometendo ‘não demarcar nenhum centímetro de terra’ das populações indígenas. Isso significa apoiar o agronegócio e tudo que representa: a concentração de terra e renda, exploração intensiva da terra, desmatamentos para monocultura, e o uso intenso de ‘defensivos agrícolas’, os agrotóxicos/venenos que afetam diretamente a saúde das populações, do ecossistema, da fauna e da flora”.

Formação

Diante deste cenário, Eliz explica que as demandas para o Serviço Social são múltiplas, passando pela visibilidade do potencial investigativo, e pela força da dimensão teórico metodológica para garantia da presença do estudo na formação sobre a história dos povos indígenas no Brasil.

“As demandas também são por identidade étnica e política indigenista dentro dos debates, e por pesquisa sobre a realidade da violência contra os povos indígenas, e sobre o empobrecimento como expressão da questão social. Também por um debate étnico-racial vinculado ao estudo sobre a questão agrária e urbana, desigualdades sociais no campo e na cidade, o estímulo e apoio à construção do conhecimento com os povos indígenas, com o movimento indígena, o reconhecimento da pluralidade étnica no país e a situação de não acesso às políticas sociais”, defendeu.

Ela acrescenta que há demandas para a formação profissional, elementos para a dimensão técnico-operativa, considerando o respeito e a proteção do direito constitucional, às tradições, crenças, costumes, língua e organização social.

“É fundamental construirmos o conhecimento sobre o que é o integracionismo, o assimilacionismo e as expectativas sociais de desaparecimento das populações indígenas, das identidades indígenas, como primeiro passo para superação da leitura romântica e tutelar da relação com povos indígenas. A pequeníssima presença de indígenas na formação em Serviço Social, como pesquisadores e profissionais em formação e atuantes, deve provocar a profissão para a realização de ações afirmativas, apoio e ampliação das pesquisas e envolvimento com as pautas indígenas, além da necessária visibilidade que a profissão precisa dar para a luta dos povos indígenas no Brasil”.

O professor Wagner Roberto do Amaral acrescenta que há coletivos de advogados indígenas, rede de médicos populares indígenas, antropólogos indígenas, e há também coletivo de assistentes sociais indígenas. “Na universidade/pesquisa e na atuação nas comunidades, essa presença no interior das nossas organizações, dialogando com a Abepss e com o conjunto CFESS-CRESS, tendo o envolvimento desta gestão da Abepss que acolhe essa demanda e temática, fomenta o debate permanente. O conteúdo significativo na formação básica e profissional é também um desafio para a Abepss que abre o diálogo com as escolas de Serviço Social. Pautamos as orientações e damos visibilidade a essa questão de maneira permanente no campo ético, político, curricular e pedagógico. E isso deve ser feito por indígenas e aliados. Essa também é uma forma de enfrentar o capital, o empresariado, o latifúndio, as corporações e as multinacionais”.

Gilza Kaingang acrescenta que o Serviço Social abre portas para a garantia e acesso a esses direitos e configura um ótimo aliado dos povos originários para que de fato seja possível alcançar e acessar os direitos. “Os indígenas vêm sofrendo vários ataques, desrespeitos, e muitas de nossas demandas não são nem compreendidas porque são colocadas nesse contexto do indígena genérico. O Serviço Social pode nos ajudar na compreensão dessas especificidades de etnias diferentes para a mudança deste cenário”, concluiu.

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