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Revolta dos Malês é inspiração para luta antirracista no Brasil de hoje

25/01/2022

Na formação em Serviço Social, é preciso descolonizar os currículos e o planejamento cotidiano, abrindo espaço para a intelectualidade negra

A promoção da articulação entre a produção de conhecimento acadêmico e os movimentos sociais contribui para o avanço da pauta antirracista no Brasil. Por isso, a Abepss destaca a importância histórica da Revolta dos Malês, uma das mais importantes revoltas de pessoas escravizadas que aconteceu no país, ocorrida em 25 de janeiro de 1835, na cidade de Salvador, na Bahia. O levante do século 19 inspira a luta atual por justiça e liberdade para a população negra do Brasil.

A assistente social Priscila Lemos Lira, doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e podcaster na Práxis Preta, lembra que a Revolta dos Malês foi um importante levante político, considerado o maior levante urbano das Américas, constituído principalmente por negros e negras africanos escravizados e livres, sobretudo muçulmanos, conhecidos como os “Malês”. Havia, ainda, muitos crioulos, como eram considerados os negros escravizados nascidos no Brasil. Segundo Priscila, o movimento ainda inspira os movimentos negros contemporâneos, pois seu ideal por uma sociedade livre de opressões ainda é a meta da luta antirracista.

“A intenção do levante era a busca pela liberdade e o rompimento da opressão do sistema escravagista vigente. Embora não tenha alcançado seu principal objetivo, devido à violenta repressão do sistema colonial, que contra-atacou de forma desproporcional, e promoveu perseguições, invasões de domicílios, penas de morte e deportação dos envolvidos, o legado que a Revolta nos oferta até hoje é a existência de uma rede de resistências contra o regime escravocrata. Isso demonstra que não havia passividade por parte dos escravizados, tão pouco a naturalização dessa realidade. Houve sim muita luta e resistência, desde o sequestro em solo africano”, explicou.

De acordo com Priscila Lemos Lira, a consciência sobre a luta histórica da população negra é de suma importância também do ponto de vista subjetivo e simbólico. Historicamente, no Brasil, o processo de escolarização, a formação enquanto individuo e o conhecimento da contribuição do povo negro na sociedade constroem a imagem do negro escravo submisso e passivo. “Esta construção corrobora com a manutenção da ordem de opressão contra a população negra, individualizando e naturalizando o lugar subalterno do negro na sociedade brasileira. Isso contribui para a desresponsabilização do estado que possui uma dívida histórica com o povo negro, que resistiu e sobreviveu à barbárie desse crime contra a humanidade que foi a escravidão e que tem repercussões até hoje”.

Serviço Social
 
Historicamente, o Estado Brasileiro utilizou e ainda utiliza o mito da democracia racial e a teoria do embranquecimento para promover o apagamento da presença física e cultural de pessoas não brancas na sociedade brasileira. Isso se dá por meio de leis, repressão violenta, encarceramento e criminalização das populações negra e indígena.
 
Priscila Lemos Lira enfatiza que é preciso que assistentes sociais se questionem sobre qual é a repercussão do mito da democracia racial nas relações sociais, na formação e no cotidiano profissional. Citando a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, ela lembra que é urgente a desconstrução da história única, assim como o pacto da branquitude e a narrativa do colonizador. “É preciso incluir a visão de quem vive e viveu as opressões, ‘a história que a história não conta’, como lembra o samba enredo da Mangueira de 2019, o lugar da intelectualidade negra, a descolonização dos currículos e do planejamento cotidiano”, disse.
 
É importante que a sociedade saiba que o sistema de exploração capitalista se beneficia da hierarquização racial que o racismo produz, e que serão os corpos não brancos os mais violentados. A doutoranda da UFJF lembra que o ambiente acadêmico historicamente foi espaço de poder, da elite, e de reprodução da ordem vigente.
 
“Nas últimas décadas, presenciamos o maior abalo nesse ambiente com a presença e ‘levante’ dos alunos negros nas universidades públicas, em virtude das ações afirmativas (Lei nº 12.711/2012). Mais ainda são necessárias ações afirmativas epistêmicas, na pós-graduação, um maior número de professores negros e a revisão dos currículos que considerem as narrativas dos que sempre estiveram de fora desse ambiente, nossa “escrivência”, como nos ensina Conceição Evaristo”, ressaltou Priscila.

A Revolta

A revolta dos Malês ocorreu na madrugada de 25 de janeiro de 1835, em Salvador, na Bahia. É considerada uma das mais importantes revoltas de pessoas escravizadas ocorrida no Brasil. O levante foi conduzido pelos africanos escravizados que lutavam por sua liberdade. A ação fez os senhores da época tremerem e temerem novas insurreições semelhantes no Brasil. A resposta veio na forma de ampliação da repressão, violência e assassinato das pessoas escravizadas.

A Revolta dos Malês traz a tona o modus operandi da secular repressão do Estado. Até hoje não se sabe se Luisa Mahin, uma das organizadoras e mais conhecidas figuras desse levante, foi deportada para a África, já que era livre, ou se foi assassinada pelo Estado.
 
“Quantas mães da favela não sabem o paradeiro de seus filhos/maridos vistos pela última vez após abordagens policiais? Africanos livres muçulmanos tinham suas casas invadidas, reuniões com mais de três negros eram reprimidas por suspeita de conspiração contra a ordem. O sistema de segurança pública hoje invade barracos nas favelas sem mandados e assassina crianças, gestantes. As religiões de matriz africana são alvo de reiteradas ações de intolerância religiosa, a juventude negra é reprimida em suas expressões culturais, até o genocídio”, relata a podcaster na Práxis Preta, Priscila Lemos Lira.
 
De Luisa Mahin a Marielles, o racismo, o sexismo e o capitalismo violentam os corpos negros e indígenas, mas a resistência é secular! Desse modo, segundo Priscila Lemos Lira, o recado da Revolta dos Malês para a academia e o Serviço Social é que “é na luta que a gente se encontra […] chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês!” (trecho do samba enredo: “História pra Ninar Gente Grande”, da Estação Primeira de Mangueira, vencedor do Carnaval 2019 do Rio de Janeiro).

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