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Lei Maria da Penha: após 15 anos, avanços sofrem ameaças em meio ao bolsonarismo

07/08/2021

Feminicídios aumentaram 22% em 2020, após o início da pandemia, e denúncias de violência contra mulheres tiveram redução de 25%; enquanto isso, menos de 25% do orçamento federal do combate à violência contra a mulher foi utilizado no ano passado

A Lei Maria da Penha, marco da luta feminista no combate à violência contra as mulheres, completa 15 anos neste sábado, 7 de agosto. Os avanços trazidos pela Lei, que entrou em vigor em 2006, são fruto de uma pauta histórica do movimento feminista que desde a década de 80 sai às ruas do Brasil. Mas as garantias não são definitivas. Por isso, agosto, chamado de Agosto Lilás, é um mês importante para a luta pela igualdade entre mulheres e homens.

Fernanda Marques de Queiroz, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e pesquisadora no Núcleo de Estudos sobre a Mulher Simone de Beauvoir, explica que o dia 7 de agosto será marcado por um levante nacional contra a violência, assédios moral e sexual, e a importunação sexual, violências que têm a dimensão da casa, do espaço público e do trabalho.

“Quem ama não mata. É preciso que haja visibilidade das violências, romper com o silêncio e pressionar o estado para que haja políticas contra a violência e uma legislação que puna agressores. É preciso fortalecer a Rede de Assistência Social e o sistema de garantia de direitos. Hoje, a consciência feminista é muito maior e há acesso às informações. As mulheres estão mais encorajadas a falar, a denunciar as violências psicológica, moral, patrimonial, e física, todas previstas na Lei Maria da Penha. Inclusive, a quantidade de denúncias de violências que não são físicas está aumentando”, disse.

Feminicídios

A professora Fernanda Marques Queiroz, que também é coordenadora de Pós-graduação da Abepss Nordeste e integrante da Coordenação Ampliada do GTP “Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Feminismos, Raça/Etnia e Sexualidades” da Abepss explica que o Brasil ocupa a quinta colocação em feminicídios no mundo, situação que foi agravada pela pandemia que restringiu o acesso aos serviços públicos de acolhimento. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública contabilizou 1.338 feminicídios no Brasil em 2020, o que representa aumento de 22% em relação a 2019. E as mulheres negras são as mais atingidas, evidenciando o racismo estrutural brasileiro: entre 2008 e 2018, houve 12% de aumento de homicídios de mulheres negras, enquanto houve redução de 11% entre mulheres não negras, segundo dados do Atlas da Violência 2020 produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

De acordo com Fernanda Marques Queiroz, as denúncias de violência sofreram redução de 25% desde o início da pandemia. O assassinato de uma mulher é considerado feminicídio quando as motivações para o crime estão relacionadas com o fato de a vítima ser mulher. Apenas em 2015 esse tipo de crime foi tipificado no Brasil com a Lei 13.104/15 (Lei do Feminicídio) que o classificou como hediondo com qualificadora da pena em 1/3.

Retrocessos

Maria da Penha Maia Fernandes, que dá nome à Lei que completa 15 anos em 7 de agosto de 2021, é uma mulher cearense que sofreu duas tentativas de feminicídio na década de 80 por seu companheiro. Entretanto, na época esse crime não existia. Ela levou tiros nas costas e, por conta disso, tornou-se cadeirante. Ele ainda tentou eletrocutá-la na segunda tentativa. Apenas mais de 20 anos depois a lei que torna crime as diversas violências praticadas dentro do ambiente doméstico entrou em vigor, levando seu nome.

“Mas agora estamos diante do risco de retrocessos. A subnotificação é muito grande, inclusive do feminicídio. Falta capacitação dos profissionais para investigar e as polícias são marcadas pelo machismo e pelo patriarcado. O Governo Bolsonaro tentou acabar com o Disque 180, um serviço essencial para que a mulher agredida consiga acessar a rede de assistência e de garantia de direitos. O corte de verbas está sendo vertiginoso, sobretudo no pós-golpe de 2016. Houve a extinção da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, que tinha status de ministério, e recriaram a pasta com uma perspectiva conservadora que joga a responsabilidade para a iniciativa privada. Menos de 25% do orçamento federal do combate à violência contra a mulher foi utilizado em 2020. Quem faz campanha hoje é veículo de comunicação privado e órgãos internacionais. Numa tentativa de enfrentar o aumento dos números de violência contra as mulheres, alguns estados criaram leis, recentemente, obrigando condomínios a notificarem os casos e a chamarem as autoridades”, disse Fernanda Marques Queiroz.

O Serviço Social tem um papel de protagonismo, trabalhando nos centros de referência, nos serviços de saúde com notificação compulsória. O Código de Ética coloca a categoria contra toda forma de opressão e discriminação. “Nessa perspectiva, é preciso lembrar o que mulheres lésbicas sofrem, incluindo estupros chamados de ‘corretivos’, assim como toda ordem de violência e exclusão enfrentada pelas mulheres trans. É preciso lembrar que o Brasil é o campeão em homicídios de LGBTQIA+ no mundo. É perigoso ser mulher em casa, na rua e no trabalho. E há a violência institucional, com a revitimização de quem sofre violência, negação dos serviços a que tem direito, além da questão estrutural, com trabalho precarizado, pior remunerado, e pequena participação nos espaços de poder, sobretudo quando a mulher é negra”, explicou a professora da UERN.

Agressor “condenado” a comprar flores

Para Maria Elisa dos Santos Braga, professora universitária de Serviço Social aposentada, atualmente professora convidada do Núcleo de Ética e Direitos Humanos da PUC-SP, é preciso reforçar que a Lei Maria da Penha não é uma conquista ganha. É um marco na luta por direitos que as mulheres deveriam ter e não têm. “Tenho o maior orgulho da minha categoria profissional porque está sempre atenta. Por isso milito há mais de 32 anos no movimento feminista”.

A professora trabalhou durante 23 anos no Centro de Atendimento para Mulheres Vítimas de Violência Casa Eliane de Grammont, no município de São Paulo, quando não havia legislação de proteção às mulheres. “Entrei como assistente social na gestão de Luiza Erundina. O movimento feminista entrava na gestão pública naquele momento, propunha serviços e políticas para iniciar o processo de atenção que as mulheres precisavam e pude lidar diretamente com as mulheres ainda sem a Lei Maria da Penha. Naquele momento histórico, as mulheres vinham ao atendimento completamente arrasadas porque os serviços públicos não acreditavam nelas. Menos de 10% das denúncias na Delegacia da Mulher chegavam ao final do processo. E as ‘punições’ aos agressores chagavam a ser obrigar o homem a comprar um buquê de flores e fazer um pedido de desculpas na frente do juiz”.

Inovadora

A professora Maria Elisa dos Santos Braga, que também é militante histórica da Abepss, do CRESS-SP e do CFESS, explica que, na década de 90, o movimento feminista começou a ficar muito forte no Brasil e surgiram as delegacias das mulheres. E sabendo como era absurda a forma como o Brasil lidava com a violência contra a mulher, a militância lutou por uma legislação inovadora.

“A Lei Maria da Penha recebeu contribuições do Brasil inteiro de diversas áreas, como Direito, Psicologia, Serviço Social, entre outras, para ter a amplitude que tem. A lei é inovadora. Tem caráter de abrangência da questão da violência muito grande. E teve um fortíssimo envolvimento e luta do movimento feminista. Antes dela, qualquer rusga doméstica que resultava em destruição do trabalho da mulher, de suas plantas e objetos, de suas roupas, na perda do emprego ou do impedimento de estudar, não resultava em punição para o homem agressor. Não havia tipificação. A violência emocional não era mensurada. E a Lei Maria da Penha trouxe essa conquista. Mulheres professoras e universitárias perdiam o trabalho. A sociedade fazia de conta que não existia o problema e que ninguém tinha nada a ver com isso. Mesmo matando, agressores eram absolvidos por defesa da honra masculina”, disse.

A professora ressalta, ainda, que homens e mulheres são contaminados pelas ideias machistas e patriarcais. “Fala-se como se a Lei Maria da Penha sozinha resolvesse um problema de séculos. Ainda há recusa de fazer boletim de ocorrência, mas agora temos respaldo da Defensoria Pública. Há mecanismos para fazer valer o direito de denúncia da mulher. Infelizmente, com o avanço da ultradireita no Brasil e no mundo, que resultou no Governo Bolsonaro, não estamos conseguindo avançar nas pautas, mas tentando manter as conquistas. A Lei Maria da Penha não é só uma política das mulheres. Se todas as políticas não incorporarem a luta, não há como fazer valer a lei. É preciso combater o patriarcado, a ideia de que há um ser superior que tem gênero definido, raça. Capitalismo, patriarcado e racismo se entrecruzam para que a violência seja descontrolada e aceita. A convivência normalizada da sociedade brasileira e das instituições com o bolsonarismo é decorrente disso. Fizemos tanta coisa linda de respeito e de entendimento do abismo de desigualdade e agora já se fala em mudar tudo o que foi conquistado como se muda o cardápio de um almoço”.

Serviço Social

O Serviço Social é uma profissão que depende de contratação e os serviços de direitos humanos e políticas públicas, que contratam assistentes sociais, estão sendo destruídos. Isso impacta diretamente a atuação profissional.

“Em termos concretos temos um projeto ético-político que conduz tudo que fazemos. Conseguimos construir um projeto emancipatório que ainda está em vigência e mantido e vibrado o tempo inteiro. Ele está na contramão do momento ultraconservador que estamos vivendo. A luta é constante. Não há tempo de dormir. Lutamos 24 horas contra a destruição das conquistas. Com o avanço da EAD, a formação não desconstrói os valores do patriarcado. A formação é de uma grandiosidade capaz de ampliar a consciência, de desconstruir a alienação, e de mostrar a importância de lutar por uma sociedade emancipatória.  Aprende-se a pensar na universidade. Ainda mais dentro de um projeto ético-político para uma sociedade emancipada como o do Serviço Social. Como fazer isso se não for presencialmente?”, diz a professora, convidando a uma reflexão.

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