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Brasil manteve lógica escravocrata para definir papeis sociais da população negra após a abolição

13/05/2022

É preciso entender o racismo como estrutural e estruturante, pois essa relação está entrelaçada com o capitalismo, azeitando o sistema e se mantendo até hoje. Em períodos de crises, essa relação contraditória se explicita de forma dinâmica e ainda mais violenta

Mesmo após a Lei Áurea (“Abolição” da Escravatura), assinada no dia 13 de maio de 1888, libertar "no papel" a população negra escravizada no Brasil, a lógica escravocrata continuou a delimitar os papeis sociais e o desenvolvimento da sociedade. A constituição do capitalismo brasileiro é um marco importante para pensar a construção de relações sociais capitalistas cimentadas no racismo. O problema não pode ser tratado como algo individual, de esfera moral.  Os papeis sociais da população negra após a “abolição” são parte inerente da estrutura social brasileira, em que as instituições foram moldadas para operarem a desigualdade das "raças" e classes no plano das relações concretas.

Nessa perspectiva, Tales Willyan Fornazier Moreira, assistente social, doutorando em Serviço Social (PUC-SP) e representante discente nacional de pós-graduação na Abepss, ressalta que o racismo se coloca como a forma “normal” de organização da vida social no Brasil.

“As desigualdades sócio raciais, históricas e seculares no país, são concebidas como norma e, por conseguinte, são naturalizadas. É preciso compreender as assimetrias vivenciadas pelas populações negras, indígenas e quilombolas, a partir dos seus fundamentos. Isso implica lembrar que estamos falando de um país que vivenciou quase 400 anos de escravismo colonial, sendo o último da América a abolir formalmente a escravidão; um país que, de acordo com estudos, traficou cerca de 10 milhões de africanos/as para serem escravizados/as, violentados/as, que tiveram suas vidas e humanidade ceifadas. Em outras palavras: um país com raízes profundamente racistas, que se consolidou a partir da barbárie, cujas relações de violência estruturaram nossa formação social”, disse.

Tales acrescenta que, na transição do modelo escravista para a de sociedade do trabalho livre, de capitalismo dependente, estas mesmas populações foram jogadas à franja marginal da sociedade. “O próprio Estado Brasileiro não só legitimou as ações bárbaras durante o escravismo colonial, como também contribuiu para a construção de políticas eugênicas após a abolição formal, cujo objetivo era aniquilar a ‘mancha negra’ da sociedade brasileira em nome de uma suposta civilidade. Exemplo disso foi o financiamento da vinda de trabalhadores/as europeus para o Brasil, e a criminalização da capoeira e de diversos elementos da cultura africana e afro-brasileira”.

Sandra Regina Vaz da Silva, assistente social e professora na Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, lembra que a Lei Áurea apenas consolidou a criação de um mito, pois não veio acompanhada de políticas compensatórias em benefício dos ex-escravizados e seus descendentes, como forma de reparo das atrocidades, dos danos e da expropriação patrocinadas pelo regime escravista. “A abolição conservou o modelo hierarquizado do escravismo que já estava subordinado aos interesses do mercado mundial. Mas a continuidade dessa lógica não pode ser encarada como herança, e sim como um conjunto de determinações que tem no racismo, no colonialismo e no escravismo os seus fundamentos”.

Racismo Estrutural e Estruturante

Sandra Regina, que também é coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Questão Racial e Serviço Social e do Grupo de Estudos Interinstitucional (GEPEQSS - UFF e Ilè Si Imó – Ufes) sobre o pensamento de Clóvis Moura, lembra que a transição do escravismo para o capitalismo ocorreu de forma lenta e gradual no Brasil, tendo perdurando por décadas, possibilitando que a classe dominante criasse vários mecanismos para manter os seus interesses. Além disso, o preconceito de cor teve o papel, com base fundante no racismo científico, de legitimar a dominação de povos e territórios, a exploração e a opressão.

“O racismo e a discriminação racial delegaram a negras e negros o trabalho braçal, doméstico, o subemprego e a informalidade. Um processo necessário na conformação do capitalismo dependente brasileiro, que em sua lógica fundante necessita do rebaixamento da força de trabalho para manter a sua dinamização. É por isso que devemos entender o racismo como estrutural e estruturante, pois essa relação está entrelaçada com o capitalismo e se mantém até os dias atuais. Em períodos de crises, essa relação contraditória se explicita de forma dinâmica e avassaladora impactando toda a sociedade. E temos o ocultamento dessa realidade, a partir do mito da democracia racial. Se até o início do século XX a construção da nação tinha como propósito apagar o passado colonial e a escravidão, considerada como atraso da sociedade, a partir dos anos 30 o estado brasileiro e sua elite intelectual passa a operar com a ideia de mestiçagem na construção da identidade nacional brasileira. O amálgama das três raças vai se caracterizar como o problema do racismo à brasileira, aquele que apesar de explícito nos dados estatísticos, nas favelas, periferias e violência do estado, vai se contrapor a uma ideologia que nega a sua existência”, explicou.    

A professora da UFF dá prosseguimento lembrando que a luta antirracista alcançou muitos resultados positivos que modificaram a percepção da sociedade a partir de um processo de mobilização sobre a consciência e a identidade racial da população negra. “Até os anos 90 a ideia de democracia racial ainda imperava no discurso oficial do estado brasileiro. Contudo, o fracasso do ‘milagre econômico brasileiro’ e a crise econômica explicitaram as contradições marcadas pelo racismo estrutural. Esse fato só foi alterado a partir do presidente Fernando Henrique Cardoso, nos anos 90. Desse reconhecimento, é inegável os estudos de FHC, sob orientação de Florestan Fernandes, sobre escravidão e capitalismo, como também a sua direção política pautada pela conjuntura neoliberal que colocou o multiculturalismo na agenda política do estado, a partir das exigências do Banco Mundial e do FMI”.

Sandra Regina ressalta que, ao final dos anos 70, em sua reorganização e ascensão, o movimento negro investiu num processo de articulação e mobilização nacional e internacional que possibilitou o reconhecimento e valorização da identidade negra e incorporação de sua pauta na agenda política nacional.

“Quatro pontos se destacam: a Constituição Federal de 1988 que estabeleceu o racismo como crime inafiançável e imprescritível, além de normas no âmbito da educação e cultura; o centenário da abolição; a Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida, em 1995; e a III Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada em Durban, em 2001. A partir destes principais marcos, o antirracismo no Brasil se delineou sob três principais frentes: nas ações afirmativas; na saúde da população negra, em especial atenção à saúde reprodutiva da mulher negra; e na educação a partir de uma política de educação antirracista. O governo Lula, apesar da política de conciliação de classes e das contradições inerentes a ela, absorveu várias demandas da população negra na constituição de políticas públicas. Contudo, a partir de 2014 houve um processo de desmantelamento que se consolidou no governo Bolsonaro. O retrocesso neoconservador e neofascista desse projeto explicitou a face racista, machista e LGBTQIA+fóbica de forma aberta e escancarada”.

Extrema-direita fascista

A professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Tereza Cristina Santos Martins, lembra que a luta do Movimento Negro tem levado ao crescimento do enfrentamento antirracista no Brasil. Em contraposição, o racismo historicamente velado ganha notoriedade pelo também crescimento do conservadorismo e da extrema-direita no país.

“Sempre tivemos uma direita racista no Brasil. No entanto, salvo raras exceções, tratava-se de uma direita que sentia vergonha de tornar público o seu ódio de ‘raça’ e classe. O que muda no atual contexto brasileiro é uma extrema direita que utiliza as redes sociais para firmar o seu posicionamento e, através dela, aumentar a sua legião de adeptos. Não podemos perder de vista que a crise do capital, como chão histórico do qual brota o avanço do conservadorismo e da extrema direita, também o é o do aprofundamento do racismo e da violência dirigida aos/as negros/as pobres e moradores/as das favelas e periferias das cidades brasileiras. Notemos também que o racismo cresce na medida em que os/as negros/as passam a disputar os espaços historicamente destinados a brancos/as. É o caso das cotas e das disputas pelo espaço das universidades, dos cargos de destaque nas instituições públicas, entre outros”, destacou.

O assistente social Tales Willyan Fornazier Moreira chama a atenção para que não se perca de vista que o racismo não é episódico ou conjuntural. “Porém, também sabemos que cada momento histórico e cada conjuntura política incidem diretamente no nível das correlações de forças. Temos vivenciado o agudizamento de desafios e violências que são históricas. Temos presenciado uma série de ataques racistas, seja nas redes sociais ou não, a exacerbação do discurso de ódio contra as populações negras, ataques e destruição aos terreiros de religiões de matriz africana e uma série de atrocidades, que vêm ganhando relevo pelo avanço do ultraconservadorismo. E essa realidade se deve, sobretudo, ao momento caótico vivenciado no país com este presidente nazifascista e puro-sangue que legitima a barbárie e contribui para o avanço do ódio e da violência”.

Tales defende que é preciso estar atento às opressões raciais – e também sexuais – que potencializam a dominação de classe. “Se quisermos, de fato, fazer uma análise ancorada na perspectiva crítica, de apreensão do processo histórico com totalidade, para enfrentar realmente a raiz dessas questões, a gente não pode achar que o debate sobre as relações étnico-raciais, de gênero e sexualidade são debates de menor importância, apartados da luta de classes, identitários ou um devaneio pós-moderno. A gente não consegue destruir o capitalismo, com todas as suas mazelas, sem destruir o racismo, o sexismo e todas essas opressões que estruturam e azeitam a máquina de dominação e exploração capitalista”.

Serviço Social antirracista

Para ele, o Serviço Social tem um papel muito importante em toda essa luta, uma vez que a profissão tem cada vez mais enegrecido e atendido majoritariamente à população negra nos diversos espaços sócio ocupacionais. “Construímos um projeto de profissão nos últimos 40 anos que se filia a um projeto de sociedade radicalmente livre. É fundamental formar profissionais com competências teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas efetivamente antirracistas. Do contrário, continuaremos contribuindo para a reprodução das relações assimétricas vivenciadas historicamente por essas populações e para a perpetuação do racismo institucional”.

A professora da UFS Tereza Cristina Martins, que também é coordenadora do Grupo do Diretório de Pesquisa do CNPq: Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Questão Social e Movimento Social (GETEQ/UFS) e ex-integrante da diretoria da Abepss, observa que há uma lacuna na formação em Serviço Social que concretamente só pode ser superada com a revisão dos currículos dos cursos de Serviço Social. “Sem dúvida, essa lacuna fragiliza a atuação profissional, sobretudo quando há o desconhecimento e/ou o não reconhecimento de que as/os usuárias/os dos serviços para os quais se voltam as políticas sociais são preponderantemente negras/os. Esse constatação não deve ser desprezada pelo Serviço Social, principalmente pela história que concretiza a nossa formação social”.

Ela defende que o avanço na pauta antirracista seja uma tarefa a ser cumprida por toda a sociedade, principalmente pelos grupos, organizações e partidos que estão situados no campo democrático de esquerda. “O racismo desumaniza, constrói desigualdades e sabota as possibilidades de construção de uma sociedade igualitária. Nesse sentido, não podemos conceber a luta anticapitalista distante da luta antirracista. Ocupar todos os espaços da sociedade na construção de uma contra hegemonia antirracista, inclusive, e fundamentalmente, no interior das instituições deve ser parte de um projeto coletivo. Projeto no qual o Serviço Social, do ponto de vista da sua atuação e formação, deve ter papel importante”.

Desafios

A professora Sandra Regina Vaz da Silva, da UFF, também falou das perspectivas de avanços futuros diante do cenário atual do Brasil. “Em um governo de extrema-direita não há como avançar. Todas as conquistas foram desmanteladas. Entretanto, eu acredito que nós, população negra, mulheres e jovens vamos derrotar Bolsonaro e seu projeto político-econômico. Hoje, o alcance das redes sociais se constitui como ferramenta importante, mas essa luta por si só não é suficiente. Não podemos cair na armadilha de uma militância de lacração ou de produtivismo teórico como força para decidir essa disputa. Há um longo e árduo caminho em que se somam assistentes sociais na defesa de seu projeto profissional e de uma sociedade livre de exploração e opressão. Um projeto que é incompatível com os valores e medidas neoconservadoras, antidemocráticas e ultraneoliberais. É de fundamental importância que tenhamos uma formação profissional que continue sintonizada com os novos tempos, comprometida com a derrota da extrema-direita e ao lado das demandas oriundas dos movimentos sociais e da classe trabalhadora, formando novas gerações de assistentes sociais e incentivando a formação continuada”.

Por fim, Sandra Regina explica que a renovação do Serviço Social significou um divisor teórico-metodológico nos rumos da profissão. Para ela, a presença e o protagonismo de assistentes sociais negras no processo foram fundamentais para acumular forças, legados e bases teórico-metodológicas voltadas ao antirracismo.

“A partir dessa construção, foi ocorrendo um acúmulo cada vez maior dessas bases, que possibilitou, através de uma articulação coletiva entre entidades da categoria, assistentes sociais, estudantes e movimentos sociais, a incorporação de importantes documentos e pautas no combate ao racismo. No entanto, esses avanços se colocam também como desafios, pois demandam fortalecimentos e maior efetividade. No âmbito da formação, uma educação antirracista requer o reconhecimento dos mecanismos que fundamentam o racismo, o capitalismo, a questão social, as políticas sociais e a luta de classes no aspecto universal e particular, de forma articulada e transversal. Isso significa que esse debate deve estar presente em todos os espaços da formação profissional, não se limitando apenas a uma disciplina específica. É preciso avançar cada vez mais”, concluiu.

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